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sexta-feira, 28 de abril de 2006

Olhos de Contemplação


Minha avó segurou a cabeça da galinha, esticando o seu pescoço. Tirou algumas penas puxando-as entre o polegar e a lâmina da faca afiada e, enquanto reclamava de alguma coisa, cortou a jugular da ave.
Eu alí, de pé, do lado, segurando as asas e os pés da galinha, senti seu corpo se aquecer e estribuchar. Não era reclamação, era dor. Morrer daquele jeito devia doer.
Enquanto todo o sangue não parou de jorrar dentro de uma bacia branca de ágata o animal se debateu. Até que foi relaxando, relaxando...indo embora...
Eu alí, aos 12 anos, via pela primeira vez como era morrer.
Depois disso, um carneiro foi morto para um churrasco no São João. Vi bem de perto os olhos do animal que, resignado, parecia olhar pra mim enquanto tinha o pescoço cortado. Era uma morte cruel, mas ele não reclamou, não se debateu. Parecia aceitar seu destino fatídico. Apenas seus olhos me contemplavam no instante em que a vida lhe abandonava o corpo.
Claro, nessa época eu era impiedoso como a maioria das crianças o é. Torturava insetos e pequenos animais. Mas, no dia em que vi meu pai entrando em casa trazendo meu cachorro morto nos braços, tudo mudou. Atropelaram o bichinho. Apagaram a luz que um dia lhe havia sido dada. Expuseram suas vísceras em praça pública.
Quando Sérgio morreu eu estava com 16 anos. Lembro que foi a única morte (de bicho ou de gente) que não me causou dor alguma. Acho, até, que foi um dia feliz, pois Sérgio era aquele tipo de garoto grandão, fortão e sempre importunava os menores. Eu odiava isso. Eu mesmo havia sido alvo dele algumas vezes, suficientes vezes para quase dar graças a Deus por sua morte. Não senti remorso algum ao encontrar, no velório, seu pai em prantos.
Depois disso, outras mortes vieram se mostrar ao meu redor. Minha avó sofreu até ficar inconsciente e dar seu último suspiro. Um amigo se suicidou. Outro morreu de AIDS. A dor da perda me foi ensinada desde cedo porque a vida é tão cruel quanto a morte. São como duas mulheres que riem das maldades que fazem.
Morrer é como se alguém nos roubasse algo; é injusto, é negar o direito de continuarmos nosso caminho.
A única certeza que temos é a da morte. Morremos um pouco todo dia e morreremos todos um dia. E eu só queria terao meu lado alguém a quem pudesse olhar com olhos de contemplação, como o carneiro me contemplou.
E, resignadamente, aceitar meu destino injusto, mas inevitável.
E eu alí, deitado, contemplando um par de olhos, ensinaria a alguém como é morrer.

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